SERTANEJO SUBSTITUI A POBREZA PELA FARTURA NA CAATINGA.

A imagem de seca e de pobreza na região semi-árida do Nordeste foi sendo alterada por meio de
iniciativas de armazenamento de água como a construção de cisternas e reservatórios subterrâneos.


Caminhar pela região do semiárido brasileiro no período da chuva é se deparar com uma realidade muito diferente daquela consagrada pelo imaginário da seca e da pobreza. Nessa época do ano, conhecida entre os sertanejos como o inverno e que compreende os meses de novembro a abril, a caatinga – que em tupi significa “mata branca” – se reveste de tons de verde, que se misturam com o céu azul de nuvens brancas. Flores brotam onde, há poucas semanas, reinavam galhos secos e retorcidos. A caatinga renasce nas primeiras chuvas e, com elas, a esperança do sertanejo.

Nesse cenário repleto de vida, alguns estereótipos do sertão são quebrados. É raro se deparar com a imagem de mulheres e de crianças caminhando quilômetros pelas estradas de terra rachada à procura de um barreiro de águas sujas. Ou mesmo um aglomerado de pessoas em volta de um açude, dividindo o precioso recurso com o gado e com os jumentos.

Na região do Araripe, no sertão de Pernambuco (veja mapa na pág. 20), por exemplo, algumas das tecnologias que visam melhorar o convívio com o clima do semiárido nordestino, como as cisternas, reservatórios subterrâneos que captam e armazenam a água da chuva, já estão presentes na vida de muitos agricultores e têm conseguido garantir um inverno mais longo e farto.
foto: Herique Picarelli
Maria Viana mantém horta com água acumulada da chuva
Na comunidade de Vidéu Velho, no município de Ouricuri, a 620 quilômetros de Recife, a família de dona Maria Viana tem colhido os frutos que a água pode oferecer. Beneficiada pelo Programa Um Milhão de Cisternas, criado pela organização não governamental ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro) em 2003, ela não apenas lutou pela construção da cisterna calçadão – que consiste em um calçadão de cimento de 200 m², de onde a água escorre para uma cisterna de 52 mil litros, como trabalhou na construção dela, em 2009. “Eu sabia que quando ela chegasse por aqui, muita coisa ia mudar.”
Casada há 26 anos com o agricultor Francisco de Assis, com quem teve quatro filhos, Maria Viana conta, orgulhosa: “Quando a gente se mudou para cá era muito difícil. Não tinha água para nada. A cada três dias, a gente pegava o carro de boi e ia até a cidade, que fica uns 10 km daqui. Era esse o caminho que a gente percorria para ter água em casa”.
As lembranças ruins de um passado não tão distante transformaram a sertaneja em servente de pedreiro durante a construção da cisterna calçadão. “Eu, meu marido e meus filhos cavamos o buraco. Era de 7 às 12, das 14 às 18 horas todo santo dia. Tinha dia que chovia e eu puxava três, quatro tambores de água de dentro para poder cavar o resto. Depois que ficou pronto o buraco, ajudava a fazer a massa, a brita de baixo, a carregar a água. Só não ajudei a colocar as placas porque as costas não deixam, senão teria colocado também”, recorda Maria Viana.

O marido, Francisco, participou do início da abertura do buraco e se emociona ao lembrar do esforço da esposa. “Eu comecei a cavar o buraco, mas fui chamado para construir outras cisternas na Serra da Ingá, em Ipubi. Quando eu voltei, faltava só o calçamento. Quem fez o buraco foi ela. Se não fosse ela, não teria saído a cisterna, eu tenho certeza disso.” Francisco é um dos 11 mil pedreiros capacitados no semiárido brasileiro para a construção de cisternas, por meio de cursos oferecidos por organizações ligadas à ASA, como as ONGs Caatinga e Chapada, ambas atuantes no sertão do Araripe.
Além da cisterna, a família de Maria Viana recebeu uma espécie de “bolsa-cisterna”, no valor de R$ 520 – que incluía sementes de hortaliças, dez mudas de árvores frutíferas, um lote com dez galinhas poedeiras e um galo, além de um casal de suíno ou caprino. Recebeu também um kit para irrigação por microaspersão e cursos de capacitação para o uso racional da água, para a produção agroecológica e para irrigação.

Cisterna pronta, hora de voltar para a lavoura e começar a produzir. Na propriedade de Maria Viana, apenas 0,5 dos seus 12 hectares é utilizado para a agricultura e nele trabalham todos da família. Embora a área seja pequena, a produção é de encher os olhos. Ao redor da cisterna calçadão diferentes culturas se misturam de forma consorciada. Enquanto as árvores frutíferas crescem, espécies de pimenta se aproveitam da sombra proporcionada por elas. Ao lado, canteiros de verduras prontas para serem colhidas. As folhas que caem das árvores retornam como adubo. Tudo produzido sem o uso de agrotóxico ou qualquer outro defensivo químico. “Eu planto no sistema agroecológico e tem dado certo. Até meus defensivos contra as pragas são naturais: uso a maniçoba (folha da mandioca), a folha da pinha e também urina de vaca”, explica Maria Viana, que tem viajado a convite da ASA para levar a sua experiência a outras pessoas e regiões do semiárido. Para quem conviveu tanto tempo com a falta da água, saber usar esse recurso é indispensável para tê-lo sempre perto. Durante o inverno, a família de Maria Viana não utiliza o recurso armazenado na cisterna, tocando toda a produção apenas com a água das chuvas e de um barreiro próximo. “Em março, a cisterna já está cheia. A gente só vai usar a água dela mais para frente, quando a seca apertar”, prevê Maria Viana.
foto: Herique Picarelli
Cavar um buraco no quintal é o primeiro passo para a cisterna
Lições do convívio
A preocupação com a água é tão grande que Francisco já fez os cálculos de quando começará a utilizar a cisterna e quanto poderá usar por dia para que a família não passe dificuldades durante a seca. “Se a gente usar três tambores de 200 litros por dia para aguar só as plantas e os canteiros, ela vai dar para três meses certinho. É justamente o período antes de a chuva voltar, de outubro a dezembro, quando a cisterna vai estar baixa, mas as chuvas já terão começado. No ano passado, começou a chover em outubro e a cisterna ainda estava cheia!”, comemora o agricultor de 48 anos.

Um cálculo preciso como o de Francisco é reflexo de uma nova cultura que se aprende na região: a de conviver com o desigual regime de águas do semiárido brasileiro, região formada pelos nove estados da Região Nordeste, pelo norte de Minas Gerais e pelo noroeste do Espírito Santo, abrangendo 1.133 cidades espalhadas em mais de 900 mil km². Nessa região vivem 22 milhões de habitantes, o que equivale a 15% da população brasileira, e são produzidos 60% dos alimentos consumidos no Brasil. O sertão do Araripe, onde vivem as personagens desta reportagem, está localizado no interior do Estado de Pernambuco, na divisa com o Ceará. É formado pelos municípios de Araripina, Bodocó, Exu, Granito, Ipubi, Moreilândia, Ouricuri, Santa Cruz, Santa Filomena e Trindade (veja ao lado). Nessa microrregião vivem cerca de 300 mil pessoas.

Iniciativas de convivência com o semiárido procuram prolongar os benefícios da chuva por meio de tecnologias simples de armazenamento de água, numa tentativa de desacelerar o processo de evaporação e garantir, ao longo do inclemente verão nordestino, melhores condições de vida e de produção agrícola. “O fato de o semiárido brasileiro estar numa região muito próxima à linha do Equador faz com que o processo de evaporação da água seja muito mais rápido do que em outras regiões no mundo parecidas com essa”, explica Ricardo Lima, do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), com sede em Campina Grande (PB).

Para Roberto Malvezzi, autor de Semi- Árido, uma Visão Holística, a rápida evaporação da água é provocada por fatores naturais do ambiente. “O déficit hídrico não é provocado pela falta de chuva, mas pela relação entre a chuva que cai e a água que evapora. Pela influência do calor e dos ventos, para cada milímetro de chuva que cai, evaporam três. Temos água, mas temos dificuldade de guardá-la.”

Outro fator que contribui para o problema do armazenamento da água é a composição do subsolo. Cerca de 70% da área do semiárido é formada por rochas cristalinas rasas, que dificultam a formação de rios perenes e tornam a água salinizada, imprópria para o consumo humano. Apesar disso, o semiárido brasileiro está entre os mais chuvosos do mundo, com média de 750 mm por ano, variando de região para região.

Dentro desse contexto de chuvas irregulares, déficit hídrico por conta da rápida evaporação e solo com alto índice de infiltração, o segredo para melhorar a vida do sertanejo passa, obrigatoriamente, por um mecanismo eficiente de armazenamento da água que cai do céu, a cisterna. E esse mecanismo tem mudado a paisagem do sertão e a vida do sertanejo. “No sertão, sempre dissemos que o problema não é a seca, mas a cerca. Hoje, acho que não é exatamente assim, mas a questão do controle da terra e da água, com a finalidade de controlar as pessoas, foi uma estratégia política fartamente utilizada por aqui”, denuncia Malvezzi.

A ASA, baseada no modelo chinês de captação e de armazenamento da água das chuvas, desenvolveu o programa Uma Terra e Duas Águas, apelidado de P1+2, com o objetivo de proporcionar aos agricultores familiares água para a produção de alimento, por meio da utilização de sistemas agroecológicos. O projeto trabalha com quatro modelos diferentes de captação de água das chuvas, de acordo com as características de cada região: cisterna calçadão, barragem subterrânea, tanque de pedra e barreiro trincheira. Em quase três anos foram construídas mais de 6 mil cisternas calçadão pelo semiárido brasileiro.

Se as cisternas domiciliares garantem liberdade ao sertanejo, os modelos construídos pelo P1+2 dão ao produtor rural a oportunidade de conviver com as dificuldades do semiárido, tirando seu sustento da própria terra. “A região foi tida historicamente como feia, inviável, hostil ao ser humano. Porém, mais recentemente, a chamada ‘convivência com o semiárido’ abriu um outro horizonte. Hoje já não se fala mais em intensas migrações, em secas, em mortalidade, em frentes de emergência ou em saques. Não foi o clima que mudou. O que tem mudado é a adequação do ser humano a esse ambiente”, afirma Malvezzi.

Lata d’água na cabeça
Não muito distante de Maria Viana, mais um exemplo de semiárido produtivo. Na comunidade da Serra dos Paus Dóias, no município pernambucano de Exu, outra família de agricultores transformou uma terra considerada improdutiva num campo de prosperidade.

Na Chapada do Araripe, a família de Vilmar Lermen, 37 anos, e de Maria Silvanete Benedito, 35, trabalha com sistemas agroflorestais e produz licores, geleias e doces. “Quando a gente chegou aqui, a terra era muito fraca e sofria com o uso de agrotóxicos e queimadas. Era um solo muito ácido e, apesar do regime grande de chuva por ano, tinha tanta formiga saúva que elas só faltavam carregar a gente”, relembra Vilmar, paranaense de Planalto, cidade na fronteira com a Argentina.

Casados há 13 anos, pais de três filhos pequenos e morando na propriedade desde 2006, Vilmar e Silvanete aproveitam toda a terra para produzir. Dos 12 hectares, 2,5 são utilizados para a lavoura e para o cultivo de hortaliças. Os outros 9,5 hectares são manejados com apicultura de abelhas nativas em conjunto com o cultivo de frutas como jatobá, cambuí e maracujá. Durante o ano todo, a família tira da lavoura alimentos sem agrotóxicos para o próprio sustento, para a venda e para a produção dos doces e licores de Silvanete. “Aqui se trabalha com o sistema agroflorestal, que é o único sistema que tem, no tempo e no espaço, sustentabilidade ecológica. Além de produzir alimentos para nossa sobrevivência, para a dos animais e, também, para a comercialização, a gente conserva todos os agentes biológicos da flora e da fauna e ainda temos sementes para abastecer a próxima produção. O excedente a gente transforma em doces e licores”, conta Vilmar, que trabalha com quase 500 espécies de plantas, entre frutíferas, melíferas, hortaliças, forrageiras para adubação do solo, medicinais e mudas.

Atualmente, a família Lermen conta com três cisternas na propriedade, duas das quais conseguidas junto aos programas da ASA – de 16 e de 52 mil litros, e a terceira construída por iniciativa própria, com capacidade de armazenamento de 70 mil litros. No total, são quase 140 mil litros de água armazenados na propriedade, que garantem a produção de alimentos durante o período mais rigoroso da seca.

Diferentemente de Vilmar, Silvanete nasceu em Exu, cresceu acompanhada pelo drama da seca e sabe, como muitos na região do Araripe, o que significa dormir com sede por falta de um copo d’água. E por ter vivenciado essas experiências na infância, valoriza a fartura de hoje. “Eu vivi a época da lata d’água na cabeça. A gente saía bem mais cedo da escola para buscar água longe. Eu sonhava em dar uma realidade diferente para os meus filhos e sabia que a água seria a chave dessa história”, sintetiza Silvanete.
foto: Herique Picarelli
A vegetação ressurge junto com as primeiras chuvas
“A renda está aqui dentro”
A vida do agricultor José Sátiro da Costa, 51 anos, também passou por transformações profundas. Filho de agricultores, nascido, criado e casado no sítio Queimada de Dentro, no município de Santa Filomena, José conviveu ao longo de décadas com as dificuldades que a caatinga impõe para quem quer produzir. “Antigamente, nessa mesma área, eu plantava só milho e se não chovia na época certa, perdia tudo”, relembra ao olhar para a terra onde hoje foi construída a barragem subterrânea com a qual mantém a produção agroecológica da família. A ideia que envolve a barragem subterrânea é simples: aproveita-se o canal de uma nascente para se construir uma barragem de concreto até as rochas do subsolo. Com isso, a umidade do solo permanece mesmo após o período das chuvas.

Na propriedade de José da Costa, as rochas foram encontradas a 5 metros de profundidade e a área atingida pela barragem subterrânea não chega a 2 mil metros quadrados, mas a produção é suficiente para atender à necessidade da família. O excedente é vendido diretamente para o Programa de Aquisição Alimentar (PAA), do governo federal. “Eu não acreditava que fosse possível plantar tanta coisa numa terra como essa. Hoje, minha comida está chegando na boca de muita gente e com um preço bom”, comemora o agricultor, que antes se via obrigado a vender os produtos para atravessadores do Estado do Piauí.

Para a família de José, a chegada da barragem subterrânea representou mais do que alimentos de qualidade na mesa durante o ano todo. “Antes, quando a seca pegava forte, a gente tinha de implorar aos governos que fizesse uma frente de emergência. Hoje, a renda está aqui dentro. Essa foi a primeira vez que me senti livre de verdade. A forma como meu pai vivia era completamente diferente, era cabrestado, era muito triste. O político para ter o meu voto tem de fazer algo pela gente de verdade”, conta ao caminhar entre os pés de árvores frutíferas e a pequena horta.

Um novo semiárido
O sertão que Maria Viana, Vilmar, Silvanete, José da Costa e tantos outros estão construindo carrega o desejo de permanecer no semiárido, de conviver com as dificuldades que o ambiente impõe e de possibilitar às novas gerações uma realidade diferente. “Aqui há um período de chuva mais restrito, de três ou quatro meses, mas há chuva. A vegetação hiberna no período sem chuva, mas não morre. Portanto, o ser humano precisa adaptar-se a essas condições naturais do clima semiárido, armazenando água, alimentos e forragem para os animais nos períodos chuvosos. Essa é a grande inversão dos últimos anos: pensar e agir a partir do período chuvoso, não do período seco”, reforça Malvezzi.

Para Valquíria Lima, coordenadora nacional da ASA, as cisternas representam uma mudança que apenas começa com o acesso à água de qualidade. “A cisterna oferece um resgate na condição elementar do ser humano: o direito à água de qualidade. Ela liberta as famílias do semiárido brasileiro e, quando falo em liberdade, penso na libertação da dependência do poder público, da troca de votos por água, da opressão das mulheres na busca incansável pela água, da libertação das crianças do trabalho árduo, liberando-as para frequentarem a escola. Por isso a cisterna, além da água, está cheia de conhecimento, de cidadania, de direitos e de liberdade.”

É assim que está surgindo um novo semiárido brasileiro, amparado no uso de tecnologias simples e baratas e sob uma nova lógica: a de que nós não vamos mudar o clima do Nordeste, mas aprender a viver sob as suas condições.
foto: Herique Picarelli
As cisternas que estão fazendo a diferença
O Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) foi criado em 2003 pela organização Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) – da qual fazem parte mais de 700 entidades de diversos segmentos sociais, com o objetivo de construir, ao longo de cinco anos, 1 milhão de cisternas pelo semiárido brasileiro.
Em oito anos de trabalho, foram construídas mais de 320 mil cisternas de placas com capacidade para armazenar 16 mil litros de água das chuvas captados por meio de calhas instaladas no telhado das casas. São mais de 1,6 milhão de pessoas beneficiadas.
Os recursos para a construção vêm, em parte, do governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social, e da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para
o Desenvolvimento (Aecid).





                                                                             

Comentários

  1. O Sertanejo está mudando a imagem da Caatinga com a ajuda
    pública. Uma experiência que demonstra a força dos brasi-
    leiros, quando podem contar com seus representantes.

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