MAMIRAUÁ- A MAIOR UNIDADE DE CONSERVAÇÃO DA AMAZÔNIA.

A população que vive na reserva de desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, é um exemplo de como
uma área de várzea da floresta Amazônica pode ser preservada e ao mesmo tempo suas riquezas serem
exploradas pela população, sem ameaça-las. O que se vê na região, é a melhoria da qualidade de vida
de todos os habitantes da reserva.

                                                         

Com 1.124.000 hectares, a RDS Mamirauá é a maior unidade de conservação brasileira destinada à proteção de florestas de várzea. Trata-se de um cenário dominado pela dinâmica da água, que impõe adaptações à vegetação, bichos e homens. A saída do Lago Tefé, que tem margens a perder de vista, é notada ao cortarmos paranás, igarapés e furos, como são chamados os corpos d’água de menores proporções na Amazônia, em direção ao rio Solimões, nome dado ao rio Amazonas antes de ele chegar a Manaus (AM). A água também muda de cor: o azul-escuro do lago é substituído pela coloração barrenta da torrente. 

A Boca do Mamirauá, comunidade situada na “porta de entrada” da reserva, não está longe agora. Cerca de 600 lagos se espalham por esse labirinto aquático, marcado por duas estações bem definidas, o que resulta em alterações bruscas no nível das águas de até 12 metros. As chuvas fortes que chegam com o fim do ano se estendem até meados de junho, enquanto o período de estiagem, iniciado em agosto, traz consigo a vazante dos rios. É quando ficam expostas as praias de areia, repletas de aves e jacarés. É, também, tempo de encher a canoa com a safra do pescado. 

Já na cheia, as águas transbordam dos caudais das torrentes e penetram nas enormes planícies da várzea, dando origem a lagos e igapós, como são conhecidas as matas inundáveis.
Habituados a esse ambiente e herdeiros do conhecimento indígena, os moradores de Mamirauá estão adaptados à sazonalidade dos recursos da várzea. Assim, por exemplo, plantam mandioca no período da vazante, quando as terras estão naturalmente renovadas pelos sedimentos trazidos desde os Andes pelas águas do Amazonas.

                                                           




A maioria desses caboclos levantou suas palafitas na beira dos rios Solimões e Japurá, nos quais se encontram grande parte dos 63 assentamentos contemplados pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável. São mais de 6.500 pessoas, entre comunitários (moradores inseridos no interior da reserva) e usuários (vivem fora dos limites da Unidade de Conservação, mas têm o direito de pescar nos lagos).
“No início, eles foram muito resistentes à implantação da reserva”, explica Marco Lopes. “Foi preciso um tempo para que compreendessem a proposta.” O diferencial, nesse caso, foi o esforço empreendido por José Márcio Ayres, um biólogo paraense que, no início de 1983, deixou Belém para estudar o uacari-branco, um macaco típico das áreas de várzea do médio Solimões que, até então, era praticamente desconhecido pela ciência. Quando chegamos à Boca do Mamirauá, Joaquim Martins, 77 anos de idade, um dos mais antigos e emblemáticos moradores da região, nos conta sobre sua participação nos primórdios da reserva: “Ajudei o Márcio a encontrar o uacari-branco e a construir uma plataforma na árvore. Ele queria entender os procedimentos do macaco”. 

Márcio Ayres passou quase um mês na zona do baixo rio Japurá na tentativa de avistar ao menos um bando de uacaris. Conseguiu muito mais. Além de bichos e plantas, se deparou com um grande número de pescadores dos grandes peixes, o pirarucu e o tambaqui, que, em decorrência da exploração desenfreada, tinham suas populações em grande risco. O mesmo acontecia com o jacaré-açu, o maior predador da Amazônia (pode chegar aos 6 metros e pesar mais de 300 kg), caçado para atender à demanda por sua carne, vinda de mercados fora de Tefé. Por fim, outra cena frequente era a dos barcos carregados com toras ilegais retiradas da mata alagada.

Para piorar, as atividades eram baseadas em relações comerciais desiguais, estabelecidas com mercadores vindos dos centros urbanos, e que impunham regras desfavoráveis aos ribeirinhos do interior. O quadro abusivo trouxe a Ayres a convicção de que uma área de proteção natural precisava ser criada no médio Solimões, mas desde que tivesse uma proposta diferenciada: a participação dos caboclos na gestão e no manejo dos recursos.

“A implantação da RDS Mamirauá foi revolucionária para as pessoas da região”, destaca o piloto do barco. Um dos maiores exemplos disso é o monitoramento dos lagos, realizado pelos próprios moradores e coordenado pelos técnicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), entidade social contratada pelo Ministério de Ciência e Tecnologia para administrar a reserva. Graças ao controle do acesso aos lagos, o pirarucu, espécie cuja pesca é proibida por lei no Estado do Amazonas, voltou a representar uma das mais importantes fontes de renda da população local. 

O esforço de Márcio Ayres fez com que a pesca manejada fosse liberada dentro da reserva a partir de 1998. Uma cota a ser pescada é determinada por um método de contagem reconhecido cientificamente. Para se ter uma ideia, apenas no Lago Jarauá, o percentual de crescimento das populações de pirarucu foi de 525% entre os anos de 1999 e 2005 – embora os próprios biólogos de Mamirauá desconfiem de índices tão elevados, a recuperação da espécie é um fato. Importante frisar que um pescado ilegal tira do ribeirinho o poder de negociação. “Na venda clandestina, eles não pegam mais do que R$ 3,50 no quilo do pirarucu. No animal legal, esse valor é o dobro”, relata Marco Lopes.


                                                         


Desenvolvimento sustentável
Por conta disso, a socióloga Claudeise Nascimento, coordenadora do Programa de Qualidade de Vida do IDSM, destaca que “Mamirauá não mudou apenas o quadro social, mas também o ambiental, já que a preservação faz da área um tipo de berçário para a dispersão das espécies animais”. O desenvolvimento sustentável (ou, em outras palavras, o desenvolvimento capaz de suprir as necessidades das gerações atuais sem esgotar os recursos para o futuro) é prática observada na coexistência entre cientistas e comunitários, promovida pelo IDSM. 

As áreas de atuação são diversas: agricultura familiar, exploração sustentada da madeira, manejo de pesca, gestão compartilhada da Pousada Uacari (que fica dentro da reserva), ecoturismo, bases comunitárias para estudo e tratamento de espécies animais, entre muitos outros projetos. Cada núcleo tem um coordenador e a participação dos ribeirinhos se dá na forma de empregados assalariados ou como voluntários. “Eu sou contratado”, gaba-se Marco Lopes. Os pesquisadores se valem dos programas para desenvolver suas pesquisas científicas, tendo sempre em mente algum ganho social para os caboclos e a preservação dos recursos naturais. 

Esse modelo exige um vaivém constante por parte dos pesquisadores. A partir da confortável sede do IDSM, em Tefé, com prédios modernos e ar-condicionado, saem para as viagens de barcos com motor de centro ou voadeiras para as bases flutuantes da reserva ou para as comunidades, nas quais há sempre um líder – eleito pelos próprios comunitários – responsável por garantir que os trabalhos sejam feitos de forma adequada. Cada grupo elege o seu dirigente e os conjuntos de comunidades organizam-se em setores, respondendo a um coordenador. Há oito setores nos dias de hoje em Mamirauá, responsáveis por decidir de forma conjunta a respeito da administração dos recursos e das questões relacionadas à vida em comum.

Melhoras no cotidiano 
Em nossa viagem, percorremos durante três dias algumas das mais participativas comunidades locais – o que, diga-se, é uma pequena amostra do que acontece por lá. Na vila de São Francisco do Aiucá, a ribeirinha Maria Amélia, a dona Morango, 55 anos, abriu as portas de sua palafita para mostrar um dos principais benefícios trazidos pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Do lado de fora, numa janela lateral, uma pequena torre com um painel capta a energia dos raios emitidos pelo sol, que, por sua vez, é transmitida por um sistema de postes com fiação para uma bateria dentro da casa, na qual é feito o armazenamento. 
É assim em outras 24 palafitas do Aiucá. “Capacitamos alguns moradores para realizarem pequenos consertos”, destaca Marco Lopes. “Antes da energia solar, moço, eu não podia acordar de madrugada. Tinha de esperar pelo sol”, diz dona Morango. A mudança lhe permitiu chegar mais cedo à roça. O sistema não suporta a força exigida por itens do porte de uma geladeira, mas é suficiente para a iluminação da casa e para aparelhos menores, como televisores, além de ter aposentado as lamparinas – e, com elas, o risco de incêndio nas casas de madeira. 

Dentre os vários programas, o de ecoturismo é um dos que atingiu maior sucesso. É centrado na gestão comunitária da Pousada Uacari e conta com membros de todas as comunidades do Setor Mamirauá, onde está localizada. Para ter acesso ao dinheiro, as lideranças devem apresentar um projeto de desenvolvimento. Vários deles já foram aprovados, com destaque para a construção de centros comunitários, a compra de rádios de comunicação e de embarcações para uso partilhado. O ecoturismo, contudo, não é a fonte de renda central dessas pessoas, mas um complemento às atividades tradicionais de pesca e agricultura que aumentou consideravelmente o poder de compra médio de algumas famílias. 

Mas as mudanças promovidas pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá na vida dos ribeirinhos vai muito além do dinheiro. “Antes de trabalhar aqui, eu só cuidava da roça”, afirma Deuseni Martins, moradora da Vila do Caburini e hoje subgerente da pousada. “Na maioria das vezes, enquanto o marido ia pescar, ficava em casa só esperando.” Todos os outros funcionários são, também, moradores da área, com a exceção do naturalista, que acompanha os turistas (70 % deles, estrangeiros) nas saídas de barco ou nas trilhas. “Nosso objetivo é que, no futuro, algum comunitário aprenda inglês e ganhe conhecimento científico para ocupar também esse cargo”, conta Deuseni, antes de nos despedirmos e entrarmos no barco para a viagem de volta a Tefé. Saio com a certeza de que, em Mamirauá, desponta uma nova versão de amazônia. E, com ela, um modelo a ser seguido para a preservação e a exploração inteligente da floresta.

                                                               

A pesca manejada do pirarucu
Com até 3 metros de comprimento e 250 quilos de peso, o pirarucu, maior peixe de escamas do mundo, não pode ser pescado no Estado do Amazonas, com exceção da área da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Foi ele o grande motivador da mobilização pela vigilância comunitária dos lagos da região. A pesca manejada da espécie, liberada dentro da reserva a partir de 1998, tem cota determinada por um método de contagem tradicional, aplicado pelos caboclos, e validado cientificamente. A partir dessa contagem, uma estimativa é passada ao Ibama, que determina a cota a ser capturada naquele ano. Além disso, com a retaguarda de Mamirauá, os comunitários aproveitam partes do peixe que, normalmente, seriam jogadas fora. Há casos de comercialização com empresas, viabilizadas pelo IDSM, da cabeça, língua e escamas do pirarucu. 
A pesca manejada valorizou o trabalho dos pescadores, que hoje conseguem um preço final melhor no momento da venda.


                                                                     

Comentários