OS CÂNIONS DAS CACHOEIRAS E ENTORNO DA CHAPADA DOS VEADEIROS.

Uma expedição de canionistas listou cânions e explorou descidas por pisos escorregadios entre os
paredões das vertentes de vários rios como verdadeiros caçadores de cachoeiras.

A Chapada dos Veadeiros levanta-se acima do horizonte com seus paredões rochosos. Nela está o ponto mais alto do Centro-Oeste brasileiro, os 1.689 metros da serra do Pouso Alto, em Goiás. Seus encantos, entretanto, não se resumem às formações que almejam tocar as estrelas. Na escuridão dos desfiladeiros, ocultam-se vales ciumentos de seus rios e cachoeiras vertiginosas. Em busca desse cenário escondido, eu e 14 canionistas e espelólogos iniciamos a nossa expedição. Serão quatro dias rumo aos recantos profundos da natureza. 


A enigmática região da chapada está situada sobre uma gigante placa de cristal de quartzo, o mais antigo patrimônio geológico do continente, formado há 1,8 bilhão de anos. A prova de que o planalto Central um dia foi tomado pelo oceano imprime-se nas rochas locais, que contêm as mesmas estruturas sedimentares das encontradas no litoral. Com o tempo, a vastidão do mar cedeu lugar ao cerrado, mas a água ainda domina parte da paisagem; o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, vale lembrar, se insere na bacia hidrográfica do rio Tocantins, uma das principais do país.


Nosso roteiro foi elaborado por Ion David, canionista pioneiro na implementação de várias modalidades esportivas na chapada. Especialista em encontrar novas gargantas e fendas, ele e outros participantes da nossa viagem foram responsáveis por catalogar 27 novos cânions na região.

                                               

Para começar o desafio, Ion escolheu o Magic Cânion com percurso de 5 quilômetros, 2 deles de caminhada, até chegar a uma vertente do rio Pretinho. Ao seguir o curso traçado pelas águas, o piso escorregadio e lodoso requer atenção redobrada ao caminhar e ao saltar os poços. De repente, a água despenca através de um desfiladeiro sem fim, até os olhos se perderem na escuridão escarpada. Uma sequência de seis paredões se descortina à nossa frente e mesmos os mais corajosos ficam impressionados.


Preparamos os equipamentos e descemos, espremidos entre as paredes rochosas encarpetadas por musgos e plantas. No corpo, uma roupa isotérmica (como a dos surfistas) me protege do contato com a água gelada e das abrasões e pancadas. São 170 metros escorregando as mãos pelas cordas até chegar a duas cachoeiras, batizadas pela equipe de Ion em 2012: a dos Anjos e a dos Arcanjos. O visual estarrecedor me dá a impressão de estar sonhando.

                                               


A natureza que cerca a Chapada dos Veadeiros e seu entorno tem esse poder sobre os visitantes. A vegetação do cerrado impõe extensas veredas de buritis, matas ciliares e plantas típicas de campos de altitude, como a cagaita, a canela-de-ema e a pequi – esta última dá um fruto muito apreciado nos pratos típicos da região. Onde o olhar pousa, o verde se desdobra em paisagens exuberantes, mas o que mais nos interessa é conquistar os leitos praticamente intocados das quedas d’água.

A transposição dos obstáculos naturais do percurso de um rio requer muito mais do que destreza e condicionamento físico, pois a correnteza pode esconder sumidouros, sifões, refluxos, entre outros perigos submersos. Não à toa, as expedições são executadas em grupos limitados e supervisionados por profissionais com experiência em técnicas verticais, socorrismo e atenção aos aspectos metereológicos. No caso de enchentes repentinas, há pouca ou nenhuma possibilidade de escapar, mas estamos no inverno – época de pouca chuva – e seguimos confiantes, no segundo dia, em direção ao próximo desafio: o cânion São Pedro, que leva o mesmo nome de um afluente do rio dos Couros. 


A água que despenca pelas plataformas rochosas faz a descida desse cânion uma das mais prazerosas e desafiantes. O impacto e o som de milhares de pingos d’água contra o corpo em queda livre são quase hipnóticos. No último trecho vertical, a corda do rapel termina a 12 metros de altura e automaticamente conduz o praticante a uma tirolesa, cabo pelo qual é possível cair em velocidade controlada no centro do poço com águas negras. Diversão pura. 


A cultura do canionismo tem por princípio evitar furar as rochas, diminuindo assim o impacto ambiental. Por isso, instalamos muitas das ancoragens do rapel nas árvores mais altas do cerrado. Nas matas ciliares, as árvores ultrapassam os 25 metros de altura, e não é diferente no cânion São Pedro.

Após um dia de descanso no acampamento, seguimos para o cânion Esmeralda, desbravado neste ano por canionistas de Brasília. A nossa expedição era, portanto, uma das primeiras, e andávamos orgulhosos entre os chapadões arenosos e os quentes campos rupestres. Caminhar naquela área, aliás, é uma maneira de entender o motivo do misticismo local. Há quem diga ser a região um portal para mundos intraterrenos e um centro energético do planeta, imune a cataclismos. O fato de a chapada ser cortada pelo paralelo 14, o mesmo que passa por Machu Picchu, a cidade perdida dos incas, também reforça as teorias.

A região tem, contudo, motivos bem menos abstratos para ser considerada especial. Em 2001, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foi eleito patrimônio mundial natural pela Organização das Nações Unidas. A área, com 15.267 quilômetros quadrados e população de cerca de 50 mil habitantes dividida em sete municípios, é um refúgio para espécies ameaçadas, como o lobo-guará e o cachorro-do-mato.


Trinta andares de descida

Às 7 horas da manhã, seguimos para a última parte da expedição depois de cumprirmos rigorosamente o ritual de checagem dos equipamentos na beira do rio Lajeado. À frente, uma fenda de 195 metros de profundidade nos espera. Na descida, o ruído da água é tão forte e intenso, que nos obriga a usar apitos e mímicas na hora de comunicarmos o que seja uns com os outros.

Após o último rapel, equivalente a um prédio de 30 andares, entendemos, enfim, o motivo de o cânion se chamar Esmeralda. A frondosa vegetação das muralhas laterais se funde ao poço em um único verde fluorescente, acentuado pela luz do meio-dia. Um casal de araras-canindés sobrevoou nossos capacetes coloridos. Ficamos calados, não era preciso falar. A expedição terminava como devia: em silenciosa contemplação à natureza.

                                                                                    

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