O DESPREZO PELO POTENCIAL DO SERTÃO NORDESTINO ACELERA A DESERTIFICAÇÃO.

Sem água, ninguém vive.” Com a habilidade de um contador de histórias que sabe prender a atenção do público, o agricultor Edézio Melo interrompe o passeio em sua pequena propriedade, ergue uma mangueira e começa a esguichar água para cima até se encharcar, sem conter o riso solto.
A alegria de viver em um pequeno oásis no sertão não esconde as lembranças áridas registradas em um álbum de fotografias antigas. Mais conhecido como Dedeco, o produtor rural de 63 anos é morador do município de São José da Tapera, no interior de Alagoas, que chegou a registrar o pior índice de desenvolvimento humano do Brasil no final da década de 1990 por conta da seca endêmica que atinge a região.
“Eu costumava plantar só feijão e milho, e isso apenas uma vez por ano, quando chovia. Na seca mais brava, andava sete léguas até uma nascente de rio. Quando eu chegava tinha uma fila de gente esperando a água brotar da terra para levar um balde para casa”, diz o agricultor. Foi a tecnologia que fez a água jorrar pela Caatinga: uma barragem subterrânea construída sob a propriedade de Dedeco represa até 75 milhões de litros de água.
Com a obra, foi possível implantar um sistema de irrigação por gotejamento que proporcionou o cultivo de 95 espécies diferentes de vegetais, entre alimentos e plantas medicinais nativas. Para melhorar a produtividade, o alagoano também conta com um biodigestor, que transforma fezes do gado em gás de cozinha e fertilizante, além de um ecofogão, que economiza lenha e produz menos fumaça.
As iniciativas que mudaram a vida do agricultor foram implantadas pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS), responsável por identificar e replicar tecnologias desenvolvidas pelos próprios moradores ou pesquisadores do semiárido.
“Aqui não se desperdiça nada, não se queima nada, nem se envenenam as plantas”, afirma Dedeco, ressaltando a aposta na agroecologia para melhorar a qualidade do solo e diversificar a produção. A colheita tem destino certo: além de serem vendidos na feira da cidade, os produtos vão para os pratos dos estudantes de escolas públicas, por meio de um programa que compra alimentos para a merenda escolar dos pequenos produtores rurais.
A vida de luta compartilhada no semiárido brasileiro pelos conterrâneos de Dedeco melhorou na última década, com a instalação de mais de um milhão de cisternas, além da distribuição regular de água em caminhões-pipa e dos programas do governo federal para segurança alimentar.
Mas a economia do semiárido — que abriga cerca de 25 milhões de brasileiros — permanece vulnerável às mudanças climáticas. Para especialistas que analisam a região, as tradicionais atividades produtivas podem se tornar impraticáveis sem a utilização de tecnologias inovadoras. Paulo Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e um dos maiores especialistas em ciências climáticas do país, justifica a preocupação. “Com a provável redução da pluviosidade, em poucos anos a prática agrícola convencional será completamente inviável na região”, ressalta.
Mandacuru na seca
O alerta do cientista é fundamentado em modelos matemáticos que preveem um clima mais severo para a área nas próximas décadas. “A previsão é de que haverá um aumento da temperatura e uma diminuição do total anual de chuvas no Nordeste e na Amazônia”, diz Nobre. “Essas duas regiões serão impactadas pelas mudanças climáticas de forma mais expressiva do que o resto do país.”
Embora as projeções sejam calculadas para a próxima década, a situação hoje já é preocupante. Em Araripina, Pernambuco, a temperatura média aumentou 4 graus nos últimos 40 anos — esse número é dez vezes maior do que o previsto pelas análises do Painel Intergovernamental para a Mudança de Clima, organização vinculada às Nações Unidas.
Outro dado que chama a atenção dos climatologistas é a redução drástica de precipitação na última década. Apesar de os moradores do sertão nordestino já conviverem com longos períodos de estiagem intercalados por poucos meses chuvosos, há registros de intensificação da seca. Agora, o período de precipitação dura menos do que quatro meses no ano e o balanço hídrico é negativo, ou seja, a evaporação da água é maior do que a chuva.
Nos últimos anos, os invernos, que concentram o período de maior precipitação no Nordeste, tiveram dias empoeirados, com poucas e rápidas pancadas de chuva. “Tem sete anos que a gente não tem inverno para colher verdura”, afirma Everaldo Rodrigues, que vive na zona rural de Piranhas, em Alagoas. Assim como ele, muitos moradores da região passam o ano esperando a safra de culturas de subsistência, como milho, feijão e mandioca, e chegam ao verão sem colher praticamente nada, permanecendo dependentes dos programas de assistência pública.
Para o agricultor, a natureza está diferente e não é possível interpretar antigos sinais da dinâmica climática. As mudanças são tantas que, se Luiz Gonzaga estivesse vivo, teria de reeditar um dos maiores sucessos do cancioneiro nordestino. Ao contrário do que o rei do baião dizia, quando o mandacaru “fulora” na seca, já não é mais sinal de que a chuva chega no sertão.
É verdade que Gonzaga não consultou modelos climáticos para cantar O Xote das Meninas, mas os sertanejos continuam esperando sinais da natureza para iniciarem o plantio: quando se faz roça e não chove, a mandioca morre seca embaixo da terra.
Enquanto os moradores observam as flores do mandacaru, Paulo Nobre analisa os cenários futuros produzidos em supercomputadores de simulação meteorológica e também não vislumbra bons prenúncios. De acordo com o cientista, a intensificação dos extremos climáticos na região não é causada pelas mudanças relacionadas apenas à emissão de gases de efeito estufa, mas também ao desmatamento da Caatinga. Nas margens do São Francisco, que corta boa parte do semiárido, sobraram somente 4% de mata ciliar, que nasce próxima ao rio.
Novos negócios
Apesar dos desafios trazidos pelas mudanças climáticas, o sol não é um vilão para o desenvolvimento de novos modelos econômicos. De acordo com o cientista Paulo Nobre, o caminho para superar a pobreza no sertão passa justamente pelo incomparável potencial de geração de energia solar, além da valorização das espécies nativas da flora. “Estamos calcinando um bioma com centenas de tipos diferentes de plantas que poderiam ser usadas como alimento, remédio ou cosmético”, afirma.
Em parceria com Nobre, o físico e doutor em geociência Ênio Bueno trabalha em um estudo sobre o potencial energético da região. “Já existem 11 mil quilômetros quadrados de área em estado avançado de desertificação no semiárido. Se cobríssemos esse território com painéis solares, produziríamos 100% da energia necessária para abastecer o país”, afirma o físico, que integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas.
Bueno lembra que a incidência de sol é maior no verão, justamente quando a agricultura é inviável no semiárido. “Em um hectare de terra que rende cerca de R$ 300 por ano com plantio de milho ou feijão, você poderia produzir 2,3 mil megawatts de eletricidade, o que significa nada menos que R$ 575 mil.”
Para transformar essa projeção em realidade, porém, seria necessário um alto investimento inicial em placas solares, o que é inviável para os moradores locais. Por isso, os pesquisadores acreditam que um modelo ideal de negócio deveria envolver o governo, a iniciativa privada e a comunidade. “Precisamos mudar radicalmente nossa matriz energética e desenhar uma nova política pública que leve em consideração o desenvolvimento local e não apenas a demanda de energia”, diz Bueno.
Mas a energia solar não é responsável apenas pela produção de eletricidade. No município de São José da Tapera, dezenas de famílias saíram da miséria graças à produção da pimenta da Tapera, uma iguaria produzida com o auxílio da ONG Instituto Ecoengenho. O projeto de plantação hidropônica utiliza a energia solar para bombear a água e fazê-la circular pelas mudas da pimenta, cultivadas em garrafas pet.
“Em uma região tão pobre, o segredo é investir em produtos de alto valor agregado, como especiarias, corantes, cosméticos ou remédios, e trabalhar com nichos especiais de mercado”, afirma o engenheiro José Roberto Fonseca, que participa do projeto. Além de plantarem a pimenta, os moradores passaram por um curso de capacitação, aprendendo a fabricar um vinagrete especial com a iguaria — que hoje é encontrada em seções gourmet de supermercados alagoanos.
                                                                  
O sertão vai virar o que quiser
Para a cientista Márcia Vanusa da Silva, doutora em biologia celular e professora da Universidade Federal de Pernambuco, a Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, esbanja possibilidades de exploração e soluções ainda pouco estudadas. Para investigar as propriedades de cem plantas nativas ela conta com o auxílio dos moradores, que conhecem há tempos as potencialidades dos vegetais.
É o caso de Benedito de Jesus, de 53 anos, uma liderança local na zona rural de Piranhas, no estado de Alagoas, e uma espécie de mago da Caatinga. Com um palavreado que parece saído de um livro de Guimarães Rosa e chapéu com estrela de couro na cabeça, ele garante que o remédio para qualquer aperreio é feito com folha, caule e raiz. “Quando alguém está doente, a gente dorme e reza pro médico alumiá o remédio. Daí a gente sonha com uma planta e, quando acorda, vai procurar no mato.”
Apesar do conteúdo místico, a sabedoria intuitiva tem muito a contribuir com o desenvolvimento de medicamentos de comprovada eficácia. A pesquisa conduzida por Silva identificou benzedeiras, curandeiros e outras referências de sabedoria popular do semiárido e realizou entrevistas sobre a utilização das plantas. Com as informações coletadas, a professora levou os exemplares das espécies para análise, a fim de estudar os princípios ativos dos vegetais em laboratório.
De acordo com a cientista, em 90% dos casos analisados até agora, o uso tradicional dos moradores é validado pela pesquisa. A aroeira, por exemplo, tem propriedade anti-inflamatória, e a catingueira funciona como cicatrizante. Silva explica que, como a Caatinga é adaptada às altas temperaturas do semiárido, esse é um celeiro de novas moléculas muito resistentes e interessantes do ponto de vista genético. Se Guimarães Rosa dizia que “o sertão é do tamanho do mundo”, todas as possibilidades da região também têm o tamanho da luta, da sabedoria e dos sonhos de seus moradores.
Os turistas têm oportunidade de conhecer o Mirante na Trilha do Pôr do Sol (Foto: Flávio Forner)

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