REGRA PARA OS AGROTÓXICOS: UMA INTOXICAÇÃO GRADUAL É MELHOR QUE MORRER DE FOME.

O glifosato é um herbicida, ou seja, mata plantas. É usado para limpar o solo e controlar ervas-daninhas nas lavouras de café, cacau, banana, feijão, milho e maçã, mas em doses muito baixas – do contrário, mataria também esses vegetais. A única lavoura que utiliza glifosato em grandes quantidades é a de soja, pois existe uma variedade transgênica, a Roundup Ready. Ela foi desenvolvida pela Monsanto (atualmente parte da Bayer) para ser imune ao glifosato – cujo nome comercial é Roundup.

Essa soja só deve ser colhida 56 dias após a aplicação do produto, justamente para que ele tenha tempo de se degradar. Mesmo assim, sobra um resíduo de glifosato, e ele não é desprezível: no Brasil, cada quilo de soja pode ter até 10 mg de resíduos do produto. É muito mais do que os demais agrotóxicos (que ficam entre 0,01 e 0,5 mg). Poderia ser ainda pior – os EUA e a Europa admitem 20 mg de resíduo do produto em cada quilo de soja. 
                                                                         Resultado de imagem para uso de agrotóxicos na lavoura de avião

Mas o real risco disso precisa ser colocado em perspectiva. “Ninguém consome o grão de soja [in natura]”, afirma Pires, da Anvisa. De fato. Soja não é como arroz, feijão, tomate, alface e outros alimentos que colocamos na boca todos os dias. Ela está presente, como ingrediente, em alimentos industrializados. E há quem beba leite de soja (cujo nível de glifosato a Anvisa pretende começar a medir). a maior parte da soja é utilizada como ração animal. Ela contém resíduos de glifosato, mas isso não resulta em risco à saúde humana. 

Estudos em que bois, vacas, porcos e galinhas foram alimentados com doses altíssimas de glifosato, centenas de vezes acima do permitido, constataram que a transferência dele é baixa: mesmo nessa situação extrema, a carne, o leite e os ovos continham pouco glifosato, menos de 0,1 mg por quilo de alimento. Na prática, esse nível já baixo acaba sendo ordens de magnitude menor. 

Como acontece com os demais pesticidas, o maior risco do glifosato é para o agricultor – especialmente se ele não tomar todas as medidas de segurança. Um estudo publicado em 2017 pela Universidade Vale do Rio Verde, em Minas Gerais, analisou as práticas de trabalhadores rurais do Recôncavo Baiano. Dos 60 lavradores entrevistados, 76,7% não utilizavam todos os equipamentos de proteção, 80% não liam a bula dos agrotóxicos, e 66,7% não descartavam as embalagens de forma correta.

 Em julho, a Justiça americana aceitou os processos de mais de 400 agricultores e jardineiros, que utilizavam glifosato e alegam ter desenvolvido câncer por causa disso. No primeiro processo, movido pelo zelador DeWayne Johnson, de 46 anos, a Monsanto perdeu e foi condenada a pagar US$ 289 milhões. Johnson cuidava do jardim de uma escola em São Francisco, e aplicava glifosato 2 a 3 vezes por mês (usou 150 galões do produto, ao longo de vários anos). No julgamento, admitiu que às vezes gotículas do produto caíam em seu rosto – e uma vez, quando o equipamento de aplicação deu defeito, ele ficou encharcado de glifosato.

Desenvolveu câncer no sistema linfático, e está em fase terminal. A Monsanto vai recorrer. “Há mais de 800 estudos apontando que o glifosato não causa câncer”, afirma Scott Partridge, vice-presidente da empresa. Se um número razoável de agricultores ganhar na Justiça, isso poderá criar uma onda contrária ao uso do produto – como aconteceu, nos anos 1990, com a indústria do tabaco nos EUA. Mas, com ou sem glifosato, os agrotóxicos continuarão fazendo parte do mundo moderno. Inclusive porque, se eles não existissem, poderia ser pior.

No século 19, a Irlanda dependia de apenas um alimento: a batata, que o explorador Walter Raleigh trouxera das Américas. Até que um fungo, o Phytosphora infestans, surgiu do nada e começou a devastar as lavouras do país. Como os agrotóxicos não existiam, os irlandeses não tinham como se defender – e a Grande Fome, como ficou conhecida, durou cinco anos e matou 1 milhão de pessoas. Outro milhão emigrou para o Canadá e os EUA. Dentro dessa massa de imigrantes estavam as famílias de Henry Ford e John Kennedy: que ordenou, nos anos 1960, a realização dos estudos científicos que acabaram levando à proibição do DDT, um dos principais agrotóxicos da época.

O mundo dá voltas. Pode até ser que, daqui a algumas décadas, a ciência descubra que os níveis de pesticida atualmente considerados seguros (desconfie)
na verdade não o são. Mas o que ela tem a dizer, hoje, é que os resíduos presentes nos alimentos não apresentam risco – desde que as normas e os limites de uso dos agrotóxicos sejam obedecidos. Só que isso não depende apenas da ciência. Também tem a ver com algo mais subjetivo e obscuro, mas nem por isso menos importante: a política.















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